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Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Naquela semana, entregou-se o povo de Cruz das Almas a suplicar à virgem pela saúde do pobre Tobias. A santa precisava dar um jeito, tanto o clamor. A começar por padre Laurindo, ao incitar os fiéis nas missas do domingo.

A derradeira foi no início da noite, em Pedrinhas, arrebalde onde a família do fazendeiro é frequente em confortável casa de veraneio. Presente na igrejinha, a quase viúva se emocionou com a solidariedade daquela gente simples e anônima.

Um pouco antes, numa visita para confortar a família, o sacerdote soube pela mulher que Tobias tinha se submetido a demorada e complexa intervenção cirúrgica, cujo resultado deixou os médicos animados. Era a virgem agindo pelas mãos habilidosas dos especialistas. O milagre era questão de tempo, imaginou.

Depois da missa em Pedrinhas padre Laurindo avistou-se com o sacristão a quem pediu para, excepcionalmente, não fechar a matriz para limpeza na segunda-feira, como o costume. Com isso, planejava grande fluxo no templo para recitação do Santo Terço aos pés da padroeira, num esforço de preces para resgatar o cowboy.

Também incumbiu Zequinha de checar se as comunidades rurais tinham programado rezas e cânticos, como era seu pedido. Se preciso, que oferecesse aos presentes um café com leite e pão com manteiga às expensas da paróquia; mas queria grande número de fiéis apelando à santa por uma graça redentora.

Antes da metade do dia naquele domingo o tempo ruim tinha cessado, o cinza das nuvens de chuva esvaeceu, e o céu sisudo converteu-se num anil fulgente. O sol brilhou e desnudou o belo e imponente Monte Pilão, na serra de igual nome.

À noite, da varanda da casa onde morava a uma quadra da matriz, padre Laurindo observava as escarpas e viu, na penumbra, paisagem ainda mais exuberante: o monte no formato do utensílio usado para fazer do amendoim boa e nutritiva paçoca tinha ganhado, ao fundo, o adereço da lua cheia. E deu asas à imaginação. Um antigo plano albergando o pilão e a santa, mas que não contava para ninguém, nem ao confessor.

Em Cruz das Almas padre Laurindo só não fazia segredo do propósito de virar bispo. Nem que fosse de diocese longínqua. Para isso, dedicava-se a estudar com afinco a História da Igreja, os Evangelhos, os Concílios e tudo que pudesse respaldar sua indicação. E se esmerava na direção do mais importante templo católico da cidade para exibir aos superiores seus predicados administrativos.

Ali sentado sob a cálida luz do luar, uma preocupação consumia os pensamentos do vigário. Se Tobias não ficasse bom logo, e no uso pleno de suas faculdades mentais, seria forçado a encontrar outro festeiro para a Festa da Padroeira, dali cerca de três meses.

Não que no mister o fazendeiro fosse insubstituível, mas, nos últimos dois anos sob sua batuta, a festa alcançou retumbante sucesso, principalmente quanto ao volume de recursos arrecadados. Substituí-lo não seria de bom alvitre, fez ver o padre à santa em suas orações antes de se deitar, em mais uma forçação de barra por um milagre da veneranda.

Rico e importante criador de gado no Grotão dos Pássaros, das mais badaladas fazendas do Triângulo do Nelore, Tobias mantinha boas relações com comerciantes, fazendeiros e gente influente da cidade e da região. Trazia muitos no cabresto, cevados com agrados, pequenos favores e até dinheiro emprestado a juro risível. Por isso, quando passava com um pedido de prenda ou patrocínio para a festa da igreja, a recíproca era generosa.

Some-se a religiosidade do produtor rural, que provia com porcos, patos e galinhas o forno dos assados oferecidos nos bingos. Os mais afortunados supriam os leilões de prendas vivas com potros, novilhas, garrotes, bodes e carneiros. Razão pela qual o padre, que não dava ponto sem nó, sonhava ver na procissão o andor da santa sobre os ombros do abastado paroquiano.

A semana pós-acidente no rodeio de Novo Cedro começou com Cruz das Almas rezando e clamando nas ruas, praças, casas, capelas e na igreja matriz por um milagre em favor do peão; e terminou com a notícia alvissareira da melhora do infeliz. Era a santa se rendendo à ruidosa pedição.

 

[Continua…]

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.