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Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

− Pare de cantar menino! Estamos na Quaresma. Você tem é de rezar! Já se confessou? Não viu que na igreja as imagens estão cobertas com aqueles panos roxos? Mataram Jesus, agora é pagar pelos pecados, fazer penitência, estafermo!

Eta, tia Filoca. Gente, isso foi antigamente, a maioria, mesmo o imenso contingente católico jovem –menos de sessenta e cinco anos− hoje em dia não sabe nada disso, não tem ideia. Não podia cantar, não podia assobiar, não podia ouvir rádio, não podia usar roupas vistosas, era obrigatório um recolhimento geral, muita oração, pensar nos pecados e se converter.

Jejum todas as quartas e sextas, não podia comer carne. Quanto muito ir à igreja na quinta-feira santa para beijar o morto, aquela estátua de Cristo deitado, todo ensanguentado, acabado de descer da cruz! Impressionava as crianças e parece que o objetivo era esse mesmo. Confesso certo nojo nessa beija-beija.

Na igreja não tocava música nenhuma, enquanto durassem aqueles quarentas dias. Só se libertava depois do sábado de aleluia, véspera da Páscoa, com direito a queimar o coitado do Judas Iscariotes.

Mas como era bom espancar o boneco do Judas, que vinha deslizando numas cordas lá de cima do poste, com bombinhas estourando pelo corpo do infeliz traidor, a cara de diabo! E a meninada e adultos mesmo desciam o porrete no Judas, para vê-lo bem morto, perna para um lado, cabeçorra para o outro.  Que enforcado, que nada!  Era nessa figura deletéria que o povo soltava todas as suas neuras, acredito que imaginando políticos de diversos matizes e exploradores de todo tipo. Pau no capeta e tudo estava resolvido.

As crianças pelo menos podiam comer a bendita paçoca caipira, aquela feita no pilão, queimando amendoim na panela, usando aquela peneira de palha para soltar a casca, com açúcar, farinha de milho e mandioca, pitada de sal. E socar, socar o pilão, precisava haver braço. O resultado era um doce delicioso, sem ser muito adocicado. Ao fazer jejum, os fiéis consumiam a paçoca com banana ou a paçoca de carne seca.  Eu preferia a de amendoim, purinha mesmo, comia o dia inteiro, jejum nenhum, penitência zero, apenas mais um doce gostoso! O duro era a patrulha dos velhos!

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Perdoe, Senhor, tanta alienação religiosa, fruto da incompreensão de tantas crianças e adolescentes! Mesmo adultos.

O período da Quaresma é importante para a Igreja Católica, momento de reflexão, de conversão, de muito orar, no silêncio, para aproximar o fiel de Deus, a quem ele deve caminhar para o encontro depois de encerrar sua vida terrena.

Em São José dos Campos, como em todo lugar, na sexta-feira santa não havia missa. Eu dizia, cínico: − Justo hoje eu queria ir à missa… Levava um cascudo. O santo e bravo padre João, célebre cônego João Marcondes Guimarães, pároco da Igreja da Matriz, fazia a procissão à noite de sexta, levando o Senhor morto, os fiéis com aquelas velas, todos vestidos a caráter, irmandades disto, irmandade daquilo.

Saía da Praça da Matriz (hoje com o nome desse padre) e ia pela Rua Siqueira Campos (rua do mercado) até a Rua Francisco Rafael (do cemitério, como diz o povo), virava à direita, descia até a Rua Coronel Monteiro (do Cine Paratodos), seguia em direção à Rua XV de Novembro e voltava para a praça da matriz.

Nós no cortejo, rezando constritos. Hum… não tanto assim, pessoal, pensava que logo após a meia noite iríamos comer um pastel de carne!  Tia Filoca que não me escute…

 

> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.

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