Foto / Claudio Vieira/PMSJC

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

“O mineiro só é solidário no câncer.” A frase foi cunhada pelo respeitado jornalista e escritor –ele também mineiro–  Otto Lara Rezende, lá em mil-novecentos-e-bolinha. Usado à exaustão na obra do brilhante e polêmico jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, o pensamento parece decretar a frieza e insensibilidade do povo das Minas Gerais e, por extensão, do brasileiro.

Mas isso não é verdade. O brasileiro –mineiros juntos– é um coração de manteiga, sempre foi. De uns tempos para cá, vê-se uma certa rispidez, uma certa ignorância quando alguns se referem aos mais necessitados. Mas aí existe muito mais de revolta contra quem nos governa do que uma nascente falta de caridade e benevolência com o próximo.

Vejamos a questão atualíssima da perda de renda da população durante esta pandemia que nós estamos vivendo. E, pior que isso, se alguns perderam renda, outros quase nunca a tiveram. São as pessoas que vivem –ou tentam viver– em situação de vulnerabilidade social.

Outro dia, testemunhei um pedido em alto e bom som por doação de alimentos que ecoou pelas ruas quase sempre tranquilas da região da Vila Ema. Era um apelo ensaiadíssimo, reconheço. Era uma espécie de dedo cutucando fundo a ferida da classe média para fazê-la sentir-se egoísta e cruel.

Após publicar o texto, fui recebendo informações de outros moradores desse conjunto de bairros e vilas que se convencionou chamar de “centro nobre”. O cidadão, segundo soube, é useiro e vezeiro nessa técnica.

“Outro dia, doamos tanto que tivemos de pagar o Uber pra ele ir embora”, disse uma senhora que já assistiu ao pedido de esmola coletiva. A própria área social da Prefeitura também respondeu que o pedinte já é conhecido de suas equipes de abordagem. E orientou o de sempre: não dê esmola, prefira acionar o 153.

Problema resolvido? De jeito nenhum. A própria síndica do condomínio visado pelo cidadão lamentou não estar em casa no momento para providenciar alguma ajuda. E o mesmo deve acontecer todos os dias, a cada dia em um prédio de apartamentos onde vivem pessoas condoídas da situação dos mais necessitados, carregando uma espécie de complexo de culpa quando dão uma dentada em um belo contra-filé –porque carne melhor que essa nem os ricos estão comendo nestes tempos bicudos.

Conclusão: o brasileiro é, sim, extremamente solidário. Dá esmola, compra alimento no supermercado para entregar ao pedinte que espera à porta, sempre reserva algumas moedas para quem pede nos semáforos. É um erro? Talvez seja. Mas, como diz o Chicó do Ariano Suassuna, “só sei que foi assim”.

Considerando a inevitabilidade desse “gene” solidário que habita em nosso povo, cabe aqui uma segunda questão: com quem sermos solidários? Indo mais longe: quem realmente precisa da nossa solidariedade?

Recorrendo a outra velha expressão da nossa língua, “aí é que está o busílis”, que equivale a algo como o shakespeariano “eis a questão”. Quem separa o joio do trigo? Quem nos diz que estamos sendo enganados?

Temos de direcionar essa pergunta ao poder público. Afinal, é o poder público quem vê pelas ruas as pessoas como indivíduos-alvos de uma investigação sociológica. São as equipes sociais que passam –ou devem passar– dezenas de vezes por essas pessoas ao longo dos dias, meses, anos.

E aí fica a pergunta. Por que aqueles que não se enquadram no rótulo de necessitados, vulneráveis, vítimas da crise econômica e da pandemia têm de dividir as ruas com os malandros, os dependentes de drogas, os vadios contumazes?

Não que essas outras pessoas não mereçam a assistência do poder público, mas aí é um outro problema e os caminhos para o auxílio são diferentes. E deve-se reconhecer, em São José dos Campos a estrutura para atendimento a esses indivíduos é elogiável. Mas é preciso que eles queiram.

Voltemos ao problema original. Faltam meios legais para tirar das ruas quem está enganando as pessoas? Será que quem pede ajuda usando engodos não cometeria uma espécie de estelionato? Falta alguma legislação penal que possa substituir a velha “lei da vadiagem”?

Não sei. E reconheço que a questão é complicadíssima. Mas insisto: o brasileiro –nesse caso o joseense– vai continuar tentando ajudar, vai continuar dando esmolas, porque essa característica está no seu DNA. E porque, sinceramente, ele não acredita que ligando para aqueles três números a comida vai chegar, naquele mesmo dia, a quem tem a família passando necessidades.

Isto faz a gente pensar que a nossa sociedade, que nunca passou por tragédias como guerras ou grandes desastres naturais, está muito mais preparada para doar do que para fazer chegar a doação a quem precisa e no tempo necessário.

Mas esta é uma outra questão, a ser tratada talvez na próxima semana.

Por enquanto, fica um abraço e um agradecimento a este povo que sofre muito, é roubado, enganado, iludido, mas não deixa de ser solidário com o seu semelhante: o povo brasileiro.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.