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Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Recentemente, na venda de um imóvel de herança, em certo momento o negócio empacou. Culpa da Justiça morosa. Por um ardil do corretor, o comprador tinha dado um sinal e assinado um contrato de gaveta. Teoricamente ele não podia desistir sem incorrer em multa.

Quando, finalmente, os herdeiros assinaram a escritura, no cartório fiz questão de enfatizar ao adquirente, apertando-lhe a mão:

– Soube que pensou num distrato. Se tivesse desistido eu teria rasgado o contrato, ignorado a multa e restituído seu dinheiro integralmente. Para mim, a palavra empenhada vale mais que papel assinado, herança do meu pai, além desse imóvel que agora é seu.

Grandes ou pequenos, em tempos remotos, negócios tinham selo do aperto de mão e garantia do fio do bigode. De origem controversa, a expressão queria dizer cumprimento da palavra dada. Época em que homem de verdade tinha barba e vergonha na cara –valor hoje em desuso. Não importava o custo, urgia cumprir o compromisso sob pena de o homem virar espectro.

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Dito isso, mergulho no passado. Se você continuar aqui vamos constatar juntos a perenidade dessa relação de confiança entre quem vende e quem compra. Com desgaste, claro, imposto pelo tempo, mas presente nas cidades pequenas e periferias das médias e grandes.

Eu tinha uns 15 anos quando, numa das vezes em que voltou à terra natal para rever amigos e familiares, meu pai entrou na venda onde comprava fiado o necessário para varar o mês. Lá, fui apresentado ao dono, o senhor Tota, um homem calvo, de camisa social por abotoar as casas próximas ao pomo-de-adão, calça social e sandália nos pés.

Aquele homem bonachão pendeu sobre meu ombro a mão gorda e, com voz clara e calma, disse:

– A vida inteira seu pai comprou fiado comigo. Eu marcava na caderneta e ele acertava no último dia do mês, sem falhar. Quando não tinha dinheiro, pagava com o fruto do seu trabalho na roça: arroz, milho, batata, fumo, porcos, galinhas…

Rapazote, ouvi aquilo e compreendi depois, analisando as palavras do experiente vendeiro, que naquela relação comercial tinha o tal fio do bigode.

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Onde moro hoje, vivencio essa particularidade, que nunca foi prerrogativa do Tota. No bar do Piauí, por exemplo, surpreendeu-me ver o freguês tomar uma bebida para, em seguida, tirar da carteira um papel onde o dono do bar anota com traços verticais e horizontais as respectivas doses. Os rabiscos formam quadrados que facilitam, na paga, aferir a quantidade de doses colocadas no prego.

Outro exemplo é do meu vizinho da esquina. Dono de uma portinha que dá para a rua transversal, “seu” Toninho vende de tudo no seu pequeno mercado. Compro dele algum item de urgência. Às vezes passo despreparado. Então, peço para marcar, o que ele faz num pedaço de papel que me é entregue depois da conta resgatada.

Nesta semana entrei no mercadinho atrás de um refrigerante e deparei-me com aquele senhor de idade marcando numa caderneta os itens que uma cliente tinha na sacola. Curioso, perguntei-lhe se o fiado era corriqueiro e fiquei sabendo que hoje, com a maquininha de cartão e o pix, nem tanto, mas que num passado recente teve muito freguês de caderneta.

– Eu preciso vender e o freguês precisa comprar. Então, facilito quanto posso, disse.

Saí do estabelecimento tendo vivas as palavras do Tota ditas em minha rapazisse. E constatei, feliz, que nem todas as antigas heranças caducaram, conforme as especificidades de cada uma.

Também me ficou claro que coube à desconfiança inventar o contrato para, mesmo com mil parágrafos, testemunhas e registro em cartório, não ser garantia do cumprimento dos termos nele delineados, sendo, muitas vezes, objeto de treta para mediação togada.

Com o passar do tempo o fio do bigode foi ressignificado na letra assinada, testemunhada e carimbada. Bem a cara da sociedade, que para contemplar os seus interesses sacrifica os mais caros valores.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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