Paciente sendo encaminhada ao hospital. Rostos desfocados. Foto cedida

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Agarrada precariamente ao muro áspero que circunda um instituto de alta tecnologia, no trevo ao lado da rodovia dos Tamoios, em São José dos Campos, ela se equilibrava perigosamente no barranco coberto de grama. A camiseta listrada de vermelho e branco e uma calcinha encardida eram suas únicas vestes.

Ainda assim, todos os carros passavam em velocidade pela rotatória ou tomavam a estrada Bezerra de Menezes sem dar atenção ao fato insólito. A amiga ao meu lado no carro apontou a situação e eu também segui dirigindo, mas porque deduzi que uma pessoa naquele estado, provavelmente, fugira do hospital Francisca Júlia. Segui, mas afundei o pé do acelerador com pressa de alcançar o hospital e pedir ajuda. A ajuda que eu não sabia dar.

Estacionei de qualquer jeito e cheguei à janela de atendimento quase ao mesmo tempo que outra mulher. E percebi que, angustiada como eu, ela relatava o mesmo fato.

Nossas vozes tinham urgência, mas não encontraram eco. Foram absorvidas pela esponja cinzenta e sem forma que envolve grande parte dos funcionários públicos em determinadas funções, treinados para que a emoção não os atinja. O problema é que, no processo de não sentir, podem perder a capacidade de avaliar situações.

Nos explicaram que sim, ela havia fugido de lá. Que o próprio carro do apoio social a levara até o hospital, mas não foi resgatá-la, após a alegada fuga, mesmo tendo sido alertados para isso, segundo nos disseram.

Não sei de onde a haviam tirado, mas não posso imaginar local mais perigoso para alguém desorientado do que a beira da rodovia, onde ela foi parar. A corda bamba daquela vida evidentemente atribulada naquele instante era apenas um fio.

Não desistimos. Nem eu nem a mulher que fora fazer o mesmo aviso. Ela estava acompanhada de um homem, que suponho seja seu marido. Insistimos que algo deveria ser feito e nos mandaram ligar para o 192 (Samu) e 153 (Guarda Municipal), a quem está ligado o serviço de apoio social.

Comecei ligando para o Samu, pois se o carro de apoio já parecia ter desistido, tentei encurtar o caminho na busca de salvar a infeliz da estrada. Mas ouvi um “não” firme como resposta e a orientação de ligar para o número 153.

A essa altura, a mulher argentina me disse que iria voltar pelo caminho e tentar ver se alguém da empresa ao lado ligaria para a polícia. E partiu.

Fiquei ao telefone, ligando para o 153. Uma vez atendida, passei por todas as explicações solicitadas, nome, local, descrição da situação e pra quê? Para nada. Me disseram que não poderiam fazer nada.

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“Eles vão me dar papá?”

Tomada por impotência e muita raiva, parada em frente da portaria, vi despontar na curva da estrada, à distância de uns 200 metros, duas pessoas caminhando devagar e um carro atrás delas com o pisca-alerta ligado.

Não é possível descrever adequadamente o conflito de emoções que me assaltou enquanto ouvia ao telefone uma atendente do 153 dizendo que não podia fazer nada, não havia protocolo, orientação, nada a fazer, ao mesmo tempo em que via a mulher estrangeira, toda vestida de branco, amparando com um abraço a mulher negra, semidespida. Ambas caminhando devagar à frente do carro que fazia escolta às duas para protegê-las do trânsito.

Elas caminhavam com toda a calma do mundo. Ignorando a pressa dos carros e a falta de atitude da administração pública.

Eu relatei o ocorrido para a atendente do 153, que me perguntou apenas se nenhum enfermeiro estava acompanhando, informei que não. Que éramos apenas cidadãos inconformados com a leniência do poder público naquele momento, ajudando uma pessoa. Disse ainda que gostaria de registrar uma reclamação depois e ela me indicou ligar para a ouvidoria da Prefeitura. Mas eu confesso que já estava cansada de fazer ligações inócuas.

Na entrada da alameda que leva à portaria do hospital, eu me juntei a elas. A mulher que ajudava disse que não havia como esperar por outro apoio, pois a mulher desorientada estava no meio da rua, em risco evidente de ser atropelada na via cheia de curvas.

Pergunto à indigente, que chora baixinho, como se chama e ela me diz um nome bonito, cujas iniciais são R.A.L. Não dá para identificar a idade na face destruída pelo mau trato de uma vida inteira. Pergunto ainda se ela mora nas ruas, tentando entender o nível de consciência dela. R.A.L. diz que sim, e afirma que duas netinhas vivem com ela. Diz ainda que não pode ir pra casa porque lá apanha de um irmão.

A mulher que a ampara afaga seu ombro e pede que R.A.L. fique calma, pois está acolhida, vai poder tomar um banho e descansar. Nesse momento, R.A.L., como criança, pergunta: — Eles vão me dar papá? Dizemos a ela que sim, que vai poder comer; mesmo sem saber o que de fato receberá no hospital.

O homem desce do carro com máscaras descartáveis, que me oferece também. Pois eles vão entrar com ela no hospital e encaminhar o atendimento. Recuso a máscara e me desculpo por não poder ficar com eles pois a colega que me acompanha tem compromisso marcado.

Eles entram com a mulher. Eu fico olhando enquanto se afastam. Agradeci a máscara, mas não tenho palavras para agradecer o carinho em minha alma ao vê-los tão entregues ao resgate de uma desconhecida.

Após todas as negativas do sistema de acolhimento de uma das mais ricas cidades do estado e do país, a atitude daquele casal é um bálsamo. É tanta dureza nessa vida que não estamos acostumados a ser confrontados com o exercício de ser apenas humano.

Enquanto eu discutia ao telefone com um sistema de atendimento surdo e sem noção, apegado às regras e em transferir responsabilidades, eles refizeram o caminho pela estrada Bezerra de Menezes, abraçaram a mulher suja e seminua e a salvaram de morrer atropelada e de, sabe Deus, quais outras misérias desumanas.

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Ela poderia ser o ente querido de alguém

Com esforço, posso entender a realidade dos funcionários mecanizados. Mas não consigo entender o sistema que os treinou. Pois situações como essa podem ser novas para mim, mas devem ocorrer com muita frequência no dia a dia do acolhimento social. E não é possível que essas falhas não gerem revisão de protocolos.

A mulher seminua vagando na estrada é o espólio de uma sociedade moralmente falida. Parei para tentar ajudar porque ela poderia ser o ente querido de qualquer um de nós. Talvez já tenha sido de alguém e merece cuidado como qualquer ser humano.

Os atendentes mecanizados, o sistema político, o sistema de saúde, podem dizer que não sei do que estou falando. Que R.A.L faz uso de drogas, que é reincidente, que fugiu do atendimento (coisa que até agora não posso entender como aquela pessoa cambaleante caminhou por 500 metros, no calor de 30 graus, e não foi alcançada por ninguém).

Me perdoem a ignorância, mas a mim nada disso importa. Ninguém merece morrer vagando por uma autoestrada, com fome, sem consciência e sequer a dignidade de uma roupa. Ainda mais minutos após ter sido recolhida por um carro que leva o nome de “apoio social”.

As reflexões sobre um fato assim, diante das obrigações da sociedade e de um sistema de administração pública, são inúmeras. Mas fico com apenas três.

– Por que o apoio social, embora alertado pelo hospital, não foi buscar a mulher?

– Por que os serviços 153 e 192 não podiam atender e não tinham protocolo para nos orientar sobre o que fazer (ligar para a ouvidoria não salvaria aquela vida)?

– Por que nem mesmo um enfermeiro do hospital foi destinado para nos acompanhar por 300 metros e dar ajuda profissional na abordagem, já que dissemos que sabíamos onde ela estava?

Enfim, no meio de toda essa tristeza, um casal de argentinos, ainda com alguma dificuldade para falar português, ignorou medos e protocolos, parou o carro, abraçou uma indigente e plantou uma semente de esperança humanitária. E é em nome dessa semente que eu não poderia deixar de escrever esta crônica na esperança de que atitudes de bondade se multipliquem e sufoquem a indiferença. Porque convenhamos, bom mesmo é ver gente cuidando de gente.

Pelo menos naquela tarde de sábado, 21 de janeiro de 2023, R.A.L. não morreu abandonada na rodovia.

 

> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.

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