Foto / Nils Bouillard on Unsplash

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

“Custava ter fervido o morcego?” A piada, de mau gosto, circulou muito nas redes sociais no início de 2020, quando o consumo do bicho, na China, era uma das teorias para a chegada do coronavírus entre os humanos. Muitas outras teorias da conspiração sobre o aparecimento do vírus vieram depois. Nenhuma definitivamente comprovada. É muito possível que nunca saibamos com certeza.

A questão do morcego fervido seria por conta dos hábitos alimentares dos chineses, que comeriam “tudo que se move”. É bom observar que isso se deve mais aos costumes adotados pela população por causa da escassez de alimentos, durante o longo regime de Mao Tsé Tung, do que à vontade de degustar comidas exóticas.

Li Cunxin, em sua biografia: “Adeus, China – O Último Bailarino de Mao”, conta de forma emocionante sobre as terríveis dificuldades para se obter comida, nas décadas de 60 e 70, nas comunas controladas com mãos de ferro pelo governo. Vale a leitura.

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Mas a defesa dos morcegos e dos chineses não é o objetivo aqui. O buraco é mais embaixo. Já ouviu falar da varíola dos macacos? Ela está batendo à porta.

A Anvisa já está recomendando o reforço de medidas não farmacológicas em aeroportos e aeronaves. Ou seja, uso de máscara, higienização frequente das mãos e distanciamento.

Até hoje, 24 de maio, quando escrevo, mais de 15 países contabilizam cerca de 120 casos da doença. Apesar das recomendações da Anvisa, tudo indica que não se trata de barrar a chegada da varíola ao Brasil; apenas de retardar o inevitável.

Somos globais. Os efeitos das guerras chegam para todos. As doenças se deslocam de avião. Os efeitos da mudança climática são democráticos. Mas ainda há quem não acredite nisso.

E, por não acreditar, não separam o lixo reciclável. Não se incomodam com a derrubada de florestas. Não usam água com responsabilidade. Não valorizam a produção de alimentos orgânicos. Não apoiam as entidades e pessoas que lutam contra a aplicação de venenos agrícolas.

Sim, não são defensivos. São venenos. Matam tudo que se move. Quebram as cadeias alimentares tão bem construídas pela natureza. Reduzem a oferta de alimentos entre os animais silvestres. Os trazem para junto de nós com o avanço das moradias sobre as pequenas reservas de matas que eles habitam.

Somos mais de 7 bilhões de pessoas consumindo o planeta, com a riqueza concentrada em 40% da população. Destruímos o equilíbrio da natureza todos os dias. A indústria tem enorme culpa, mas é o consumo que regula o mercado e acredito que cada mudança de hábito tem valor e pode nos colocar um passo mais longe da destruição da raça humana.

Se preocupar com o que compramos para levar à nossa mesa, pensar duas vezes antes de trocar equipamentos eletrônicos só pra ter uma foto com mais definição, se preocupar com o destino de pilhas, baterias e plásticos, equivale a ferver o morcego. Ou, ainda, equivale a não precisar consumir o morcego por necessidade.

Mas é sempre mais fácil apontar o dedo para o outro. Qualquer outro. E, com isso, nem saímos de uma pandemia e já podemos engatar em mais uma. Mesmo não sendo tão maligna quanto a covid, ainda tem potencial de causar sofrimento e perdas.

A varíola, originária de roedores silvestres e repassada inicialmente aos macacos, é até comum na África, mas não costuma chegar a outros países. Nesse surto que se desenha, casos já foram registrados na Argentina. Aqui pertinho.

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Em meio a tanta desgraça estabelecida nos últimos tempos, é capaz de ainda voltarmos no tempo, para 1904, e protagonizamos outra Revolta da Vacina no Brasil. Já pensou?

Caso você não se lembre dessa parte da história, a Revolta da Vacina foi um motim popular ocorrido no Rio de Janeiro contra a obrigatoriedade da vacina, enquanto a varíola lotava hospitais e matava. Houve depredação, saques e confronto violento entre manifestantes e a polícia com saldo de 31 mortos, além de centenas de feridos e presos.

Embora a vacina obrigatória fosse o gatilho da revolta, motivações políticas que incluíam a vontade de depor o governador também faziam parte do imbróglio. A gente fica com a impressão de que esse filme estava em cartaz há bem pouco tempo, não é?

Ainda tem mais. Diante da iminência da chegada da varíola por aqui, vale lembrar que não é de hoje que as fake news fazem vítimas nestas terras tupiniquins. A vacina da varíola era produzida a partir de material genético de vacas, mas precisamente do líquido de pústulas de vacas doentes. Uma das mentiras espalhadas na época era que as pessoas que tomassem a vacina ficariam com feições bovinas.

Acho que é melhor encerrar por aqui.

 

> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.

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