Foto / Agência Brasil/Divulgação

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Para além das narrativas históricas, criativamente desenvolvidas por mentirosos profissionais para deixar bem na fita governantes e figuras de destaque, a realidade quase nunca tem cores tão atrativas.

Um bom exemplo disso é o quadro bem pintado do Grito do Ipiranga, onde D. Pedro –que naquele momento ainda não era primeiro– teria declarado a independência do Brasil. Isso foi o que nos ensinaram na escola.

Hoje em dia já temos um vislumbre da verdade. E deve ser mais perto da realidade dos fatos envolvendo a independência, que, antes do tal grito, já havia sido decidida por dona Maria Leopoldina e José Bonifácio, no Rio de Janeiro. É preciso ser muito tolo para acreditar que a história acontece nos estúdios de televisão ou às margens de riachos borbulhantes, de forma espetacular e romântica.

A história acontece é atrás de portas fechadas, em reuniões regadas a café e conhaque, com acordos onde, em geral, todos ganham, menos a massa que se chama povo e serve o café.

Assim, Leopoldina e Bonifácio decidiram e anunciaram a independência do Brasil em reunião de ministério e despacharam mensageiros para avisar o regente que não havia saída. Era declarar a independência ou voltar a Portugal para ser prisioneiro da corte, em meio aos graves problemas políticos que o país vivia na Europa.

Esses fatos aconteciam enquanto D. Pedro sacolejava, com dor de barriga, em cima de uma mula pelas trilhas tortuosas da serra do Mar, indo de Santos a São Paulo. Reza a lenda –ou a verdade– que a cena do Grito do Ipiranga jamais ocorreu. Teria sido mais uma conversa agoniada entre o príncipe e o padre Belchior que seguia com a comitiva.

E olhando para o que se tem de registro sobre o perfil de D. Pedro fica muito difícil acreditar nessa pantomima de alazão e grito de espada em punho. Quando se observa por outros ângulos a biografia de D. Pedro I, o homem era um desonerado, um bon vivant, um descompromissado, adúltero e, possivelmente, violento com a esposa. Esse perfil está nos livros reescritos da história, nos filmes e nas novelas. Deve ser verdade, então.

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O reinado de D. Pedro I não durou dez anos. Um período turbulento com a economia quebrada e uma disputa de poder entre liberais, que desejavam uma monarquia constitucional com poderes do imperador limitados, e um grupo de portugueses que apoiavam a monarquia absolutista, com poder total ao rapaz desvairado que ocupava o trono.

Quando abdicou do trono, em nome do seu filho D. Pedro II, foi para tentar consertar essa confusão que já havia deixado os bastidores e virado uma briga de garrafadas pelas ruas. Ou seja, fez a zoeira e fugiu da raia.

Durante seu reinado, uma das histórias mais lembradas é seu caso tórrido de amor –ou safadeza– com a Marquesa de Santos. Ele manteve a amante por sete anos, debaixo dos olhos de todo o país e da esposa, Leopoldina. A mulher que segurava as pontas das patuscadas políticas e –tudo indica– tomava as decisões que importavam, que lhe deu sete filhos, foi humilhada publicamente e, pelo que se conta, chegou a abortar um filho por ser agredida pelo imperador. O mesmo aborto teria sido a causa da morte da imperatriz.

O caso com a Marquesa de Santos só terminou em 1929, três anos após a morte de Leopoldina, quando D. Pedro precisou limpar sua barra para conseguir outra esposa com sangue real.

Em 1831, quando abdicou do trono e voltou a Portugal, ele lutou na guerra civil do país, contra seu irmão que havia deposto a filha de D. Pedro, Maria II. E aí tem todo aquele imbróglio familiar de guerra do trono, mas a parte que interessa aqui é que foi nessa aventura em terras portuguesas que D. Pedro se apaixonou pela cidade do Porto, onde viveu por menos de um ano, durante a guerra. Mas onde foi visto como verdadeiro herói, ajudando Maria II a recuperar o poder.

Nesse período ele contraiu uma tuberculose e acabou morrendo. Mas antes de passar desta pra melhor, como volúvel incorrigível que era, fez um testamento determinando que seu coração deveria permanecer na cidade do Porto.

Desejo de nobre não se discute. Assim, o coração de D. Pedro foi arrancado e há quase dois séculos é conservado em formol e permanece em uma igreja na cidade do Porto.

Seu corpo chegou a ser enterrado no mausoléu da Dinastia Alcântara, em Portugal. Mas desde 1972, após muita negociação política, sabe-se lá a que custo, seus restos mortais foram trazidos para o Brasil e estão ao lado de suas duas esposas, no monumento à Independência, às margens do Ipiranga, em São Paulo.

Bom, vamos combinar que o coração dele nunca esteve com as esposas, então esta parte faz sentido.

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Agora, por ocasião dos 200 anos da Independência, lá vamos nós de novo. Negociação que vai e que vem, Portugal liberou o coração de D. Pedro –que lá não é primeiro– para ser exposto nas comemorações da Independência.

Recepcionado com honras militares, o coração pousou novamente no Brasil, no dia 22 de agosto.  A exposição “Um coração ardoroso: vida e legado de D. Pedro I” está sendo realizada no Palácio do Itamaraty, em Brasília.

Ninguém pediu minha opinião, mas vou dar assim mesmo. Essa coisa toda é mórbida, esquisita e sem propósito. Há muitas outras ações que poderiam ser tomadas para comemorar os 200 anos da Independência. Recuperar o riacho do Ipiranga, por exemplo, que hoje não passa de um canal de esgoto a céu aberto. Opa, uma parte nem a céu aberto fica.

Mas já que o coração veio passear, por que não aproveitar a oportunidade e enterrar logo esse coração na mesma cripta aonde está o corpo, no Monumento da Independência, perto do riacho?

Eu sei, a frase não ficou igual ao título. Mas eu só usei pra chamar atenção mesmo. Porque é o título de um livro famoso que narra a história da ocupação do oeste dos Estados Unidos, no final do século19, quando comunidades indígenas foram removidas de suas terras, tiveram suas culturas destruídas e acordos desrespeitados. Seus guerreiros foram ainda massacrados pelo exército dos EUA, em nome do progresso.

Ou seja, narrativas para deixar colonizadores bem na fita é a regra de como se registra a história favorecendo àqueles que, talvez, nem coração tivessem.

 

> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.

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