Foto / Maria D'Arc

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

O sabiá bateu as asas e alçou voo do muro, onde esteve pousado por um breve instante.

Na rádio, que ouço no celular enquanto preparo o almoço, o locutor informa a partida da jogadora de vôlei Isabel. Inspiração de tantas meninas durante minha adolescência. Eu nunca me dei bem em jogos de quadra, sempre fui mais das letras. Mas também me inspirava vê-la estampando capas de revistas e conquistando espaço feminino para além das passarelas.

Ouvi sobre a morte de Isabel quando em minha memória ainda eram tão recentes as perdas de Gal Costa e Rolando Boldrin. Todos até jovens ainda. Boldrin, talvez, não muito, mas é assim que a gente começa a pensar em pessoas de 60, 70 anos quando já contamos também mais de quatro ou cinco décadas de existência; como jovens “ainda”.

Sigo com meus afazeres e pensando nisso enquanto enxáguo uma blusa no tanque, porque vez ou outra eu dispenso a máquina de lavar e faço do esfrega e torce uma terapia, que me distrai e afasta do teclado de computador onde ganho a vida. Sinto a água quente que sai da torneira, por conta do sol forte a aquecer a caixa d’água sob o telhado. Justo quando a quero fria, para refrescar as mãos. Nada é exatamente como queremos. No inverno, as mãos congelam sob a bica de água. Ninguém controla as estações, ninguém controla o tempo e ele corre como a água da torneira.

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Blusa no varal, vejo a notícia no Instagram do Estadão: Jane Fonda tem câncer e diz não ter medo da morte. Mesmo que não a deseje. Será que só eu percebo essa ronda desagradável do tema morte? Parece que nos cerca com insistência de uns anos pra cá.

E não é partida, passagem, viagem. É morte mesmo. Aquela que nos leva daqui e deixa esperando o grupo de trabalho político, a equipe de gravação do programa de TV, que cancela os shows. Que nos arranca das ideologias, nos leva da beira do tanque de roupas, da corrida no parque, da caminhada à padaria, do abraço quentinho do amor.

A roleta-russa da existência nivela a todos sem dó em tábula rasa. Pois mesmo os mais famosos, que ganham estátuas, memoriais, livros, seguirão mortos. Tudo que somos, vemos e defendemos estará –quase sempre mais cedo do que gostaríamos– soterrado pelo passar do tempo, que se faz nosso amigo, mas também flerta com a morte.

Com seu manto negro esfarrapado, como é retratada, ela esconde a face no capuz consciente de que ninguém a quer. E se vinga da rejeição nos esfregando na cara todos os dias que ela, e somente ela, é a única certeza.

E talvez a rejeitemos justamente por isso. Por ser tão certa e inevitável. A incerteza parece tão mais bela. Grávida de imprevistos a vida oferece tantas possibilidades. Desencontros, reencontros, um sabor novo de sorvete, um beijo roubado, a paixão descoberta em outro país, um anúncio de cura, um convite inesperado.

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Mesmo que guerras, pandemias e a feiura de algumas notícias do cotidiano violento se revezem a nos alertar o tempo todo para a certeza de que ela virá.

Mas quando, por um segundo, paramos e absorvemos isso, ato contínuo negamos. E em nome de uma sobrevivência mais leve, essencial, apegados à beleza fugaz da vida, vemos o aviso pelo avesso. Entendemos o alerta como: aproveita, porque é tudo tão breve quanto o pouso de descanso do sabiá. E assim como ocorre com o pássaro livre, não temos controle algum sobre isso.

Aproveita. É breve, muito breve.

 

> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.

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